25 maio, 2016

Molhada pela língua da noite

Ela me tocou a nuca
Consequentemente, eu estremeci
Disse que me desenharia à carvão mineral
Eu quase acreditei
Quis escrever em fragmentos, apoiando sua mania de pôr pontos finais a qualquer circunstância. Deliberadamente, faiscante, comparei seu corpo ao que costumava escrever e, de imediato, estremeci novamente pensando que, a curto prazo, suas unhas me tocariam quase paralelas. Eu custo a querer interrupções. Como previsto, quase que habitualmente articulado, ela me tocou novamente, agora nas costas: um gesto conhecido de quem agarra a cortina de renda para apreciar o sol. Ela agarrou meu sutiã; assim: insatisfeita, enclausurada, tacitamente perversa, julgando que não haveria rejeições – e como poderia haver? - fez do fecho um fardo, soltou, alegrou-se. Agora, neste instante, o poder era seu.
Ela fez da minha pele
um monocromático Portinari
Consequentemente, eu franzi o cenho
Falou que não se vestiria como num filme francês
Eu ardi em febre.
Corei gradualmente. Minha pele negra, raiz mulata, traço indígena; ainda que sem nenhuma pré-disposição, onde seu dedo batia, rosava. Quis falar sobre amor. Por que diabos toda escrita de cunho sexual terminada sempre com o último arfar do gozo? Este também terminaria, caso houvesse sexo. Mas minha moralidade se estendia, quase como uma beata, santificada pelos apelos tradicionais. Eu quis gritar para todos, ainda que confessionário fosse extremamente ínfimo que, me perdoe, Senhor, mas eu não resisti.
Ela cuspiu no meu colo
um misto de rum e vinho tinto
Sussurrou que me carregaria pro banheiro
Eu me excitei no mesmo instante
Eu nunca me prestei a tais serviços. Quando olhava para ela, um ‘foda-se’ chegava rápido na minha cabeça e um ‘me foda’ também. Mas eu só calava, pressentia em silêncio com um só movimento de dedos: mais pra baixo, por favor. Seu olhar era azul-marinho, porque apesar da explícita melanina, eu só enxergava um céu escuro de madrugadas exaustas de quem ama clandestinamente em um par de olhos castanhos. Ela não ficou pro café da manhã, disse que precisava ir. E foi, assim: adeus, enfim, pronto, acabou.
Ela não me deixou olhar
quando a porta se fechou a minha frente
Garantiu que voltaria na lua minguante
Eu esperei a vida inteira.

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