Eu, que não viria, até ontem sacudir esses braços
pra cima e pedir clemência;
subir em passos longos o mais alto morro
pra sobrevoar tantas cabeças
como um pombo-correio
designado habilmente para transpor
no caminho de alguém: esta carta.
Pra você, que não sabe direito quantas horas
dormiu essa semana porque nunca soube
identificar os ponteiros pretos e aquele vermelho
intruso no relógio. E, mesmo não sabendo,
percebe pelos olhos fundos o quanto o chão gelado incomoda.
Pra você, que viu os três filhos tropeçarem
em pedras embaixo do viaduto asfaltado há poucos dias
mas que nunca deixara de ser podre, sujo, imundo.
Quando carregou os três e mais algum peso de madeira nas costas.
Pra você, que observa cada acidente grave
sentado no meio-fio ao meio-dia em ponto,
naquela escadaria em que levava as pessoas de bem
aos mais ricos dos tronos onde fora batizado.
Ouçam-me, com essa palavra que não me é de direito
mas que é digno de qualquer letreiro de loja;
essa palavra que ousa transfigurar a linguagem
mais verdadeira, esta que se fixa à margem
por um alto índice de erros gramaticais.
Ouçam-me, com essa garganta seca que treme,
que geme e que se acaba.
Esta pessoa aqui que nunca teve voz
mas que humildemente acha que não é preciso
ser comum pra se identificar.
Que não é preciso pernas fortes, braços largos
pra quem a vida basta.
Que não é preciso saber cor, gênero, conta bancária
pra que as línguas se toquem firmes e se suguem amenas.
Ouçam-me, como se ganhasse do vizinho
um relógio digital que lhe falasse as horas, além
de um colchão que te fizesse perder a insônia;
como se seus filhos tivessem desviado das pedras daquele caminho
e te acordasse às oito horas da manhã
com o café preparado
ou como se pelo menos não pisassem mais nas suas pernas
ao descerem a escadaria
e perguntassem, gentilmente, como vai o seu dia hoje. Apenas hoje.
Ouçam cada palavra que lhe fora despejada com carinho
ou ainda aquela que fira.
Porque a dor é só um produto de um sistema que sobrevive por não saber ouvir.
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