
Como assim nunca ouviu Chopin?, era algo extraordinário,
como pode alguém viver sem nunca presenciar aqueles pianos e violinos noturnos?
Ela me olhava, pedindo desculpas, eu não sou obrigada a conhecer essa sua
lucidez louca, essa sua mania de
intelectual-graduado-questionador-contemporâneo, esse conceito musical que você
carrega na mochila. Sou daquelas, você sabe, que ouvem Caetano
madrugada a fora, que exalam aquele rock cansado, aquelas batidas sem ritmo.
Tenho aquele coração de eterno flerte, aquele suor sagrado, aquele cisco no
canto do olho. Preciso que você entenda que essas coisas não se escolhem, baby,
que são as informações que chegam e que ficam; e que você precisa parar de
achar tudo fora de moda.
Ela ganhava todas as discussões, pensei, sem chantagem, sem
medo, sem alterar aquela voz mansa, cheia de desejo. Essa bagagem cultural não
pode destruir meses de carência compartilhada, de tragos ao ar livre, de
romances inventados. Com os dedos nos meus cabelos, ela dizia o mesmo: não
implica mais com a minha musicalidade brega, com os meus secos e molhados e
aquela rouquidão dos anos 90. Você devia se tornar escritor, querido, gritar
todo esse vazio que você carrega no peito, essa melancolia barata, esse sentimentalismo de quinta. Sempre achei que
ela adorava essas pessoas sentimentais que carregam um buraco na essência,
aquela falsa perspectiva de vida, o charme do cigarro caindo da boca. Eu já te
disse, o livro que eu escrever terá que ser o mais triste do mundo, preciso que
as pessoas comecem e terminem com lágrimas nos olhos, com lenços nas mãos. Que
psicopata, ela me dizia, não estraga as pessoas com seu falso sofrimento;
escreve tanto sobre cigarros e nunca fumou. nunca bebeu. nunca transou de
verdade, nem comigo. nunca agonizou de amor nem gozou daquela coisa que a gente
chama de, isso mesmo, felicidade. Do que adianta escrever e não vivenciar nada?
Se a essência da escrita está naquilo que a gente sente?
E eu pensava que o
mais triste é que ela estava certa mais uma vez e que eu deveria parar de achar
bonito toda essa tristeza, esses saltos, esses suicídios, essas caras mortas de
bar. Não falo mais disso, querida, deixemos de lado o restante da humanidade,
seja alegre ou seja triste; essa coisa de otimismo não funciona comigo, mas
deixemos pra lá. Chega mais perto e me faz lembrar do que eu deveria ter lido
em você, dos discos de Gilberto, me mostra o teu samba, me diz como eu devo
chegar naquela garota de Ipanema, naquele menino do Rio, me mostra como a
menina dança. Olha que lindo esse seu suéter, esses seus suspensórios de menininho,
sua falta de preconceitos que tanto amo. Eu que tanto quis encontrar meu lugar
ao sol, me achei nos seus olhos de garota hippie-indiana, na sua mania
ecológica, budista, poetisa de botequim. Olha aqui nos meus olhos cinzas, vê se
você acha uma pontinha de liberdade, um devaneio se desfazendo. Não me deixa ir
embora mais uma vez, não me deixa assim tão solto; não quero essa saudade de
fim de semana. Mas veja, preciso te dizer, espera eu tomar coragem, quero dizer
que preciso ir novamente. Sei que te pedi pra não me deixar fazer essas coisas,
mas você entende que eu preciso? Você precisa entender que não me deve ouvir
sempre, só quando eu te pedir. Isso, como agora, exatamente como agora. Não se
afasta desse jeito, preciso encontrar um lugar pra me perder. Poderia ser nos
seus olhos, mas eles parecem tão felizes, eu não caberia aí dentro. Não precisa
fingir esse choro, você sabe que eu volto mesmo pedindo pra eu não voltar. Quem
seria sua válvula de escape sem mim? Sou eu quem ouve suas aventuras
clandestinas, meu bem. Vou naqueles shows de Marisa e Adriana pra me lembrar de
você e vou passar a colocar adoçante no meu café pra te ver cristalina.
Deixe
que o tempo trate tudo que faltou acontecer, aquela saudade que a gente sente
antes de dormir. Pega aquele livro do Caio, lê aquele trecho pra eu não me
esquecer da sua voz. Eu conseguiria te falar mais se aqui estivesse mais
escuro; mas não desliga as luzes, deixa eu continuar olhando pros seus olhos,
identificar esses tons de castanho traiçoeiro. Eu disse que iria te decifrar,
mas acho que não consegui. Tentei, meu bem, juro que tentei. Pega aqui na minha
mão pela última vez e me lembra do que eu já devia te esquecido há muito tempo.
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