04 julho, 2015

Falei, mesmo que não ouvisse




Ela, sujeita e nunca imune, de amores inventados e tantos perdidos, dizia sentir sempre, escorregadia e entregue, os vazios existenciais e os implantados. Não importava, amava e se doía enquanto carregava uma garrafa de confusão entre o peito e parava em cada esquina, esperando a noite cair. Dançava no meio das luzes acesas e os olhares atentos e as risadas de lado; estava perto de chorar, dava pra sentir. E chorava, chorava, chorava. A noite vazia, e o peito mais ainda, sangrava pelas bordas e a enxia de esperança. Estava perdida, pude perceber. Perdida e exausta da vida, colocava sempre os dedos dentro do bolso da camisa xadrez (como amava aquela camisa vermelha de dor e cansaço) e encarava a possibilidade de um cigarro na ponta dos lábios e a fumaça saindo e a vontade de correr chegando.
Mas não fumava, era o que dizia. E dizia tantas coisas que já nem dava pra acreditar, coisas como vou parar de me autodestruir e parar de chegar ao fundo do poço sem ao menos ter tentado. Estava sempre cantarolando Chico e repetindo que sua lei agora a obrigava a ser feliz, mas nem sempre conseguia, nem sempre dava pra ser. E agora que tinha liberdade, não sabia como. E eu a olhava de longe; moreninha e sofrida, transparecia num sorriso uma ternura inconfundível e uma incerteza surreal, mas a raiva lhe corroía sempre dentro do peito e a ternura logo desaparecia. Esperava qualquer coisa como algum ataque no meio da rua, brigas e enxaquecas; mas ela, tímida, não saía do lugar reservado para decadentes se abrigarem. E parecia nunca ter abrigo, um lar, uma casa pra onde voltar.
        Nunca consegui olhar seus olhos, de tanto que encarava o chão. Mas eu imaginava tudo castanho nela, quem sabe um verde caído, quem sabe tons de mel ou um breu, tons de cinza-escuro. E eu imaginava que ela sabia de mim e sabia que eu pensava naquele choro de esperança à noite, antes de dormir. E que a ouvia, mesmo que não falasse. Que sorria, mesmo que ela não sorrisse de volta. Que a defendia diante dos vizinhos e escrevia pra ela toda madrugada de insônia, porque era o que dava pra fazer no momento. Era o que eu fazia por ela. Eu parava sempre na mesma estação, ida e volta, encontro e despedida. Ainda dava pra ver seus pés descalços pela janela do trem que me levava sempre a um destino contrário ao dela. Mas nunca parecia saber pra onde ir, vagava o dia inteiro. E hoje, chão molhado de chuva, ela pareceu se encantar pelos trilhos molhados, pois, felina e amarga, segurou com força o que parecia ser uma liberdade feliz. Do alto, eu pude vê-la sorrindo, me encarando. “Tem gente que vem pra nunca mais”, pensei. Tem gente que já vira poema só de saber pisar no chão.

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