Ela, sujeita e nunca
imune, de amores inventados e tantos perdidos, dizia sentir sempre,
escorregadia e entregue, os vazios existenciais e os implantados. Não importava,
amava e se doía enquanto carregava uma garrafa de confusão entre o peito e
parava em cada esquina, esperando a noite cair. Dançava no meio das luzes
acesas e os olhares atentos e as risadas de lado; estava perto de chorar, dava
pra sentir. E chorava, chorava, chorava. A noite vazia, e o peito mais ainda,
sangrava pelas bordas e a enxia de esperança. Estava perdida, pude perceber.
Perdida e exausta da vida, colocava sempre os dedos dentro do bolso da camisa xadrez
(como amava aquela camisa vermelha de dor e cansaço) e encarava a possibilidade
de um cigarro na ponta dos lábios e a fumaça saindo e a vontade de correr
chegando.
Mas não fumava, era
o que dizia. E dizia tantas coisas que já nem dava pra acreditar, coisas como
vou parar de me autodestruir e parar de chegar ao fundo do poço sem ao menos
ter tentado. Estava sempre cantarolando Chico e repetindo que sua lei agora a
obrigava a ser feliz, mas nem sempre conseguia, nem sempre dava pra ser. E
agora que tinha liberdade, não sabia como. E eu a olhava de longe; moreninha e
sofrida, transparecia num sorriso uma ternura inconfundível e uma incerteza
surreal, mas a raiva lhe corroía sempre dentro do peito e a ternura logo
desaparecia. Esperava qualquer coisa como algum ataque no meio da rua, brigas e
enxaquecas; mas ela, tímida, não saía do lugar reservado para decadentes se
abrigarem. E parecia nunca ter abrigo, um lar, uma casa pra onde voltar.
Nunca consegui olhar seus
olhos, de tanto que encarava o chão. Mas eu imaginava tudo castanho nela, quem
sabe um verde caído, quem sabe tons de mel ou um breu, tons de cinza-escuro. E
eu imaginava que ela sabia de mim e sabia que eu pensava naquele choro de
esperança à noite, antes de dormir. E que a ouvia, mesmo que não falasse. Que
sorria, mesmo que ela não sorrisse de volta. Que a defendia diante dos vizinhos
e escrevia pra ela toda madrugada de insônia, porque era o que dava pra fazer
no momento. Era o que eu fazia por ela. Eu parava sempre na mesma estação, ida
e volta, encontro e despedida. Ainda dava pra ver seus pés descalços pela
janela do trem que me levava sempre a um destino contrário ao dela. Mas nunca
parecia saber pra onde ir, vagava o dia inteiro. E hoje, chão molhado de chuva,
ela pareceu se encantar pelos trilhos molhados, pois, felina e amarga, segurou
com força o que parecia ser uma liberdade feliz. Do alto, eu pude vê-la
sorrindo, me encarando. “Tem gente que vem pra nunca mais”, pensei. Tem gente
que já vira poema só de saber pisar no chão.
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